O ano em que a leitura tirou o trabalho do centro da minha vida

Paula Fonseca Stanton
8 min readDec 23, 2020

"Estou emburrecendo", falei para o meu terapeuta enquanto me jogava no sofá do seu consultório. E contei para ele a minha recém-criada alegoria das luzes tristes de natal. "Sinto como se eu fosse um pisca-pisca cujas luzes acendem e brilham alegremente para o trabalho mas se apagam para qualquer outra coisa sem resistência alguma". Tudo era o trabalho e meu trabalho era tudo.

Eram meados de 2019 quando eu percebi pela primeira vez que havia algo de errado na minha relação com o trabalho. Pouco tempo antes, eu tinha um orgulho radiante do lugar central que ele tinha na minha vida e dos resultados que essa centralidade me trazia. Achava o suprassumo do reconhecimento ser chamada de “viciada em trabalho”. Até que me percebi uma pessoa tediosa, vivendo à parte do mundo, mulher de um assunto só. Tão diferente da criança que eu era e do que eu imaginava que seria quando crescesse.

Terminei 2019 com a meta de, em 2020, voltar a ser mais que o meu trabalho. O plano era simples: retomar a leitura e a escrita, dois hobbies que, durante a minha infância e adolescência, expandiam sem muito esforço minha visão de mundo e de mim mesma. Sobre a escrita eu falo outro dia; hoje eu vim contar a história de como a leitura me salvou de ser um pisca-pisca triste enquanto acidentalmente me tornava uma profissional melhor e mais potente.

Quando a leitura virou hábito

A meta que me impus de ler 30 livros em um ano não era sobre o número de livros, mas sobre estimular um hábito sustentado: o número precisava ser ousado o suficiente para que a única escolha possível fosse me comprometer com a leitura ao longo do tempo. Um simples sprint desesperado no final do ano, quando me deparasse com todas as resoluções anuais que não cumpri, não resolveria.

Não precisei ler 30 livros para desenvolver um hábito — e eu saberia disso se tivesse lido antes "O Poder do Hábito", de Charles Duhigg. Lá pelo final do primeiro mês de leitura quase diária, dois dias sem ler já me geravam estranhamento. Eu queria ler nem que fossem só algumas páginas por dia, até que nem sabia mais dizer quantos livros já tinha lido nem quantos ainda teria tempo de ler.

A meta de ler 30 livros se tornou irrelevante quando o hábito (e uma ajudinha da pandemia que desacelerou o mundo) me fez ler 60. Mas o hábito fez mais por mim do que entregar um número de livros.

Quando o hábito me trouxe atenção

O hábito também me ajudou na luta sisifiana contra a tendência de me distrair com qualquer borboleta real ou imaginária que cruzasse minha frágil atenção. Pratiquei mindfulness sem saber que era isso que estava fazendo quando percebi que o mundo inteiro caía em segundo e desimportante plano quando minha atenção plena estava nas palavras que lia. Ficavam de fora os problemas do dia a dia, as ansiedades e as preocupações.

O sinal que meu marido mais viu em 2020

O que descobri de muito valioso é que, uma vez desenvolvida, a atenção concentrada é facilmente transferível para outras atividades. A atenção que aprendi com a leitura também me ajudou na meditação que hoje me faz dormir logo depois de deitar na cama, me ajudou a estar presente de verdade nas interações com a minha família e, veja a ironia, me ajudou a manter o foco necessário para algumas tarefas do trabalho mesmo quando presa em um escritório barulhento e cheio de interrupções.

Nota: eu poderia ter aprendido isso só lendo "Trabalho Focado: como ter sucesso em um mundo distraído", de Cal Newport. Mas foi mais divertido e infinitamente mais efetivo aprender fazendo e depois só fazer um brinde mental ao autor enquanto lia seu livro.

Quando a atenção me fez ter mais consciência de mim

A essa altura preciso fazer uma confissão: os 30 livros que eu me propus a ler em 2020 inicialmente seriam apenas de negócios, ciência, psicologia e filosofia. Afinal, o objetivo era aprender… certo?

Até que uma amiga me desafiou a ler ficção. Torci o nariz: "Ficção é entretenimento, não leitura séria". Ao que ela respondeu com a paz de quem anteviu o xeque-mate: "Primeiro, ficção é séria como qualquer outra leitura. Depois, mesmo que você não acredite nisso, eu te pergunto a que serve a sua necessidade de seriedade na leitura".

Bum. A que serve a minha necessidade de seriedade na leitura? Não será à obsessão por produtividade que está por trás do mesmo vício em trabalho que quero combater com a leitura? Abaixo com o plano de ler apenas não-ficção.

Foi assim que comprei, por indicação do GoodReads, o primeiro livro de ficção do ano — "Pessoas Normais", de Sally Rooney. Detestei cada página do que me pareceu uma narrativa adolescente, mas segui o plano de não servir a minha obsessão por produtividade.

Qual não foi a minha surpresa ao aprofundar meu entendimento do que chamei lá no primeiro parágrafo de "estar oca" quando Mersault, protagonista de "A Morte Feliz", de Albert Camus, descreveu sua realidade com o trabalho:

"A sala não era suja nem sórdida, mas lembrava a qualquer hora do dia um pombal em que horas mortas teriam apodrecido […] Ele pedira esse trabalho […] no início tinha achado nisso uma porta de saída para a vida" (p.32 da edição da BestBolso).

Puta merda. Albert Camus sabia em 1951, ano em que o livro foi primeiramente publicado, a confusão em que eu tinha me metido. Puta merda. Eu tive um papo semi-psicográfico com Albert Camus. Puta merda.

Foi aí que percebi: se partir de teorias e teoremas e estudos acadêmicos para construir os seus próprios é o que chamamos na academia de estar "sobre os ombros de gigantes", reconhecer-se na ficção de um gigante é receber um abraço dele.

De Camus em diante, ficção tomou sem remorso nem vergonha o lugar dos meus livros de não-ficção. Pouco tempo depois, Milan Kundera conversou comigo, em "A Lentidão", ainda sobre a minha relação com o trabalho:

"Por que o prazer da lentidão desapareceu? Ah, para onde foram aqueles que antigamente gostavam de flanar? […] Um provérbio tcheco define a doce ociosidade deles com uma metáfora: eles estão contemplando as janelas de Deus. Aquele que contempla as janelas de Deus não se aborrece, é feliz. Em nosso mundo, a ociosidade transformou-se em desocupação, o que é uma coisa inteiramente diferente; o desocupado fica frustrado, se aborrece, está constantemente à procura do movimento que lhe falta" (p.8 da edição da Companhia de Bolso)

Bum, implode meu mundo de novo. Veja, eu amo meu trabalho de verdade. Mas o vício nele não era resultado desse amor, mas da frustração de quem busca o movimento que lhe falta em outras áreas da vida. Levei o tema para terapia, descobrimos o que faltava, sigo resolvendo esse tema e, quanto mais o resolvo, menos central (e mais saudavelmente amado) se torna o trabalho na minha vida. E mais bem-vinda se torna a cada vez menos ocasional desocupação. A agnóstica aqui hoje quase vê as janelas de Deus.

Cada autor de ficção que li trouxe lucidez para a minha visão sobre mim e sobre o mundo. Entrei em crise com Chimamanda em "Americanah" ao perceber que meu esforço obcecado de falar um inglês sem sotaque era apenas o medo de preconceito, de evidenciar ao Outro gringo meu baixo status de mulher latina na hierarquia da nobreza humana criada por eles mesmos. Deixei de fazer esse esforço e deixei de pensar menos dos sotaques fortes que ouço por aí. Revivi, ao mesmo tempo, o câncer da minha mãe e o meu casamento com a história de Julie, personagem criada por Lori Gotlieb em "Talvez você deva conversar com alguém" (que, na verdade, nem é ficção propriamente dita). E percebi que a força da classe social de alguém é muito mais poderosa que a força de seu país de nascimento quando vi minha infância de classe média-baixa na Bahia narrada com precisão na Nigéria de Buchi em "Cidadã de Segunda Classe" e na Itália de Ferrante em "A Amiga Genial".

Meu ponto é: ler e refletir sobre minhas próprias reações ao que leio são uma forma potente de aprender porque trazem a minha experiência para o centro de uma narrativa que não é minha e evidenciam, ao mesmo tempo, a universalidade e a singularidade da minha vivência. Assim, eu pensava sobre mundo e pensava sobre mim, sobre minhas crenças, meus comportamentos, meus porquês.

Esse ponto não é novo. Irvin Yalom e Freud já tinham falado do poder da narrativa de ficção versus a literatura técnica/acadêmica. Yalom explica, em Existential Psychoteraphy, por que preferiu escrever os romances "Quando Nietzsche Chorou" e "A Cura de Schopenhauer" a manuais técnicos para ensinar aos seus alunos o que eram psicoterapia existencial e psicoterapia de grupo:

"A literatura sobrevive […] porque algo no leitor salta livro adentro para acolher a sua própria verdade. A verdade de personagens ficcionais nos move porque é a nossa própria verdade" (página 21 da edição da BasicBooks)

E, se quero fechar essa seção novamente ressaltando a ironia da vida ao estabelecer um paralelo entre os milagres que a leitura opera e as necessidades do trabalho de que eu quis fugir com a leitura, digo apenas que consciência de si mesmo é uma das habilidades mais cruciais para o complexo mundo do trabalho de hoje, correlacionada a desempenho, efetividade em posições de liderança e sucesso profissional. Não fui eu quem disse, foi Harvard Business Review.

Uma parte de mim aprecia esse ano caos que foi 2020 com sua chegada explosiva jogando tudo para o ar. No roteiro de volta ao chão, muitas coisas encontraram novos lugares. As lampadazinhas do meu pisca-pisca seguem acendendo para o trabalho, mas não se apagam mais quando ele se retira do recinto. Não sou mais uma mulher de um tema só e tenho a leitura a agradecer por grande parte desse movimento.

Por fim, cumpro aqui uma das outras resoluções que eu havia feito para esse ano: escrevo e publico, na fé, na coragem e na insegurança, o meu primeiro artigo que não tem meu trabalho como protagonista desde 2012, quando dei os primeiros sinais do meu vício em trabalho. Se muito, aqui ele é coadjuvante. Nem mesmo isso, acho que ele é só pano de fundo.

Protagonista aqui é a redescoberta de mim mesma, o poder dos hobbies, a minha aproximação paulatina de quem meu eu criança teria orgulho de se tornar quando adulto. E a felicidade de chegar a Janeiro de 2021 mais perto de ser essa pessoa do que eu estava em Janeiro de 2020.

Um sábado de livro, sofá, vinho e Lewis Carroll (meu cão caçula)

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Paula Fonseca Stanton

Proud introvert. Book worm. I-study-for-fun kind of nerd. Human Resources executive and consultant. Mother of 2.